quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Aquele ritual da Sofia


A garota dos olhos vermelhos fitou a luz da lâmpada com as pálpebras semicerradas. Parou um pouco para pensar sobre o que estava prestes a fazer; pensou, pensou e pensou mais uma vez e, mesmo assim, o fez. Sentiu a lâmina gelada contra a pele de seu pulso e a dor que ela causou ao cortá-la. Viu o sangue vermelho-escuro saindo timidamente de onde a lâmina havia sido pressionada, primeiro lentamente, como quem inspeciona o lugar para onde está sendo mandado, e depois jorrando sem parar. A garota se arrependeu na mesma hora de ter feito tudo aquilo: doía demais, ardia demais, dava trabalho demais esconder as feridas depois, dava trabalho demais fingir que estava tudo bem. Ela sabia que o que estava sentindo naquele momento iria voltar mais cedo ou mais tarde e que, mais cedo ou mais tarde, se arrependeria novamente. Ela faria tudo de novo e sabia bem disso. Sempre achou todos aqueles sentimentos, aquelas atitudes, aquelas ideias perturbadoras e toda aquela dor intencionalmente provocada uma grande idiotice, mas sempre a faria de novo enquanto morasse naquela casa. Talvez enquanto estivesse viva.

Ela limpou o sangue com um lenço escuro, escuro das inúmeras vezes que havia sido utilizado para a mesma finalidade, e levantou-se do chão do banheiro. Pegou base e corretivo e passou no rosto de qualquer jeito, tentando esconder as olheiras, e pintou os olhos com lápis escuro, escondendo a vermelhidão de lágrimas acumuladas por tanto tempo. Saiu de lá se sentindo um pouquinho melhor que antes e pôs um sorriso no rosto, aquele sorriso que todos já estavam acostumados a ver: um sorriso tão falsamente repetido que, depois de um tempo, ela começava a temer que o maldito acabasse se prendendo permanentemente em seu rosto, como prendedores
de roupas que deixam marcas nas mesmas depois de secas.

Tomou café como em todas as outras manhãs. Arrumou-se como em todas as outras também. Abafou um grito ao passar um pouco de perfume e, acidentalmente, deixar cair algumas gotas em cima de seus cortes. Amarrou uma fita vermelha - vermelho, sua cor preferida - em cima do lugar onde os machucados se encontravam e fez um pequeno laço no fim
do nó. Escovou os dentes, penteou os cabelos, olhou-se no espelho e é, decidiu, estou definitivamente apresentável. Ninguém perceberá, ninguém descobrirá. Era o mesmo ritual de
todos os dias, afinal, repetir para si mesma as coisas que mais temia acontecer para que seu cérebro lento as fixasse e a impedisse de ter tanto medo. Todos os dias, após o banho, ela
observava os traços de seu rosto atentamente, como se o espelho fosse uma lupa, à procura de algo diferente. Algo que nem mesmo ela sabia o que era, mas que, no dia em que aparecesse, ela comemoraria. Sorriria verdadeiramente, então, e poderia tirar aquela velha máscara que muita gente ainda não havia percebido que há anos ela usava.

E, desse jeito, ela saiu sozinha e em silêncio.

2 comentários:

  1. Lindo e trágico, amei o texto.
    A tristeza que te consome lentamente..
    Só acho que "idéia" ainda deve ser acentuado, ou será que tenho idéias muito ultrapassadas?

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  2. Eu tô tentando me acostumar à reforma ortográfica, mas também acho que "idéia" fica muito mais bonita acentuada. (Ela e as outras palavras que perderam o acento, aliás.)

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